Imagine um universo em expansão: o Cristianismo, uma grande família religiosa – a maior, com mais de 2,1 bilhões de fiéis, em um mundo com oito bilhões de habitantes. O seu nome remete ao mito fundador, Jesus Cristo, personagem histórico sobre o qual se ergueu um universo religioso devidamente explicitado nos quatro evangelhos (vistos aqui como literatura e mais que história), com muitas galáxias – Catolicismo, Protestantismo, Pentecostalismo, Neopentecostalismo, Anglicanismo, igrejas coptas, ortodoxas, católicas locais. Dentre todas essas vertentes, o Catolicismo tem mais de 1 bilhão de seguidores, um pouco mais de 50% da família cristã. Ao lado, outros universos: Islã, com mais de 1,4 bilhões, sem-religião/ateus, Budismo, Hinduísmo, Xintoísmo, Confucionismo, Judaísmo e mais religiões, os outros bilhões.
Origens: do quase-um ao múltiplo
Raízes complexas desenharam uma silhueta unitária, o Catolicismo, mas, ao mesmo tempo, plural, que cria Catolicismos. Provavelmente, o fulcro é a comunidade cristã gerada com a atuação de Pedro, ex-pescador, dentre as várias comunidades cristãs. A de André, outro apóstolo, originará a Igreja Ortodoxa, diversificada em suas tradições. A de Marcos, a Igreja Copta. O nome grego, transmutado ao latim eclesiástico (catholicus), trai o anseio de ser universal: katholikós/kata (junto) e holos (todo), reunindo as muitas expressões em um feixe.
A palavra emergiu em registros escritos, na Igreja de Roma, pela diáspora de cristãos dispersos pela dominação romana, na altura do século 2. Inácio de Antioquia a mencionou e o nome oficial etiqueta este grupo religioso desde o Concílio de Constantinopla, em 381 D.E.C. Entretanto, a semântica é sempre fruto da prática social, cultural e histórica, pois não há um sentido natural, permanente ou metafísico em qualquer palavra. Se se muda o tempo, a sociedade, o espaço, a história, a semântica muda.
Na arqueologia do signo identifica-se a expansão da fé cristã pelo Império Romano em torno de alguns eixos: ceia em comum, batismo (entrada de novos seguidores), porta-vozes do divino e autoridade (sacerdócio, bispo), comunidade, continuadores no além (santos e santas) e a divina mãe. O crescimento difuso, descentralizado, cheio de disputas internas, mudou entre a conversão político-religiosa de Constantino (século 4) e o reinado de Justiniano (século 6) e com isso nasceram cinco grandes patriarcados: Roma, Constantinopla (Istambul), Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
Porém, o conceito de autoridade universal-exclusiva conectava-se à estrutura administrativa do Império Romano e, por conta disso, a sede imperial – Città eterna – está na origem do Catolicismo ou dos Catolicismos. Instituições e valores romano-latinos impregnaram práticas e crenças orientais transmigrados que resultaram no Cristianismo primitivo, nascido na Judeia, fruto de complexas mesclas.
Em um ambiente cheio de religiosidades orientais (culto de Mitra, o Sol Invictus) e costumes etrusco-romanos (Saturnálias), nasceu o Catolicismo, que cresceu frondoso. A arte paleocristã associou estética pagã e figura mitificada de Jesus Cristo (Mitra-Helios-Orpheus-Jesus). Há uma “religiofagia” (incorporação, por uma religião, de elementos de outras religiões) das exterioridades (alteridades) e interioridades (divergências) em constante ação no deslocamento do(s) Catolicismo(s).
Das catacumbas ao trono pontifical, essas estruturas se mantiveram em constante expansão pelo mundo, com ramificações rizomáticas. O(s) Catolicimo(s), nasceu(ram) em um estado de tensão entre centro e margens. Teodósio, por meio do Édito da Tessalônia, em 380 D. C. oficializou o cristianismo, proibiu cultos greco-romanos e fundiu poder religioso e civil, uma aporia que aterroriza o Cristianismo, daí em diante ao hoje. Dessa forma, por onde se alastrava, havia uma remissão dual: ao local, onde se davam intercâmbios, e ao centro ordenador, Roma, sobrepostos e em mútua referenciação.
O Catolicismo construiu sua vocação sincrética na dualidade do singular e do plural, entre a multiplicidade de expressões e a unidade político-administrativa do papado, apoiado em uma cúria e um colégio central. Ao falar de Catolicismo, falamos da Igreja Católica Apostólica Romana. Ao falar de Catolicismo, falamos de vivências polifônicas. Tudo em relação, ainda que de forma tensa, mas simbiótica, entre mito e história, fé individual e potência mediadora do religioso, em que permeiam também lógicas tensionadas, cujo feixe passa por cada paróquia, bispado, papado, laicato, movimento, conferência episcopal, catolicismo.
Um eixo axial ou um rizoma, ou os dois?
A herança judaica (sagrado absoluto-transcendental), grega (filosofia metafísica platônica) e romana (instituições político-administrativas centralizantes) irrigaram essa galáxia. Não podemos concebê-la sem referenciar questões a ela entrelaçadas: primado do pescador hebreu crucificado ao inverso em solo etrusco-romano (segundo a tradição religiosa); extensão do universal (trono imperial transformado em papal) conjugada à busca constante do consenso; sacramentos (batismo, eucaristia, ordem, confissão, demais), práticas cultuais aos santos e às santas e à Virgem Maria, Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento).
É uma forma e ao mesmo tempo uma fôrma às quais plasmam-se conteúdos diversos. À fôrma central, acoplam-se seis ritos (latino-romano, que enfeixa tudo, bizantino alexandrino, armênio, caldeu, antioqueno) e 22 igrejas. No entanto, o celibato é comum e obrigatório somente no rito principal. Essa confluência gerou uma dinâmica sui generis, grupos binômicos ambivalentes e inseparáveis: corpo central, hierocrático-oficial (clero) e membro sincrético-poroso (laicato); corpus dogmático-restritivo-formalista e prática plástica-abrangente-popular-mística; desejo ardente de disciplina e passado idealizado-rígido e abertura generoso-cósmica à comunhão, ao coletivo-social.
Os binômios, por sua vez, possuem diferenciações internas, guiadas por lógicas culturais e geopolíticas. Por isso, o catolicismo romano medieval, o ibérico quinhentista, o popular brasileiro novecentista, o da libertação dos anos 1980 e o “tefepista” (do movimento Tradição, Família e Propriedade) digital dos anos que correm, não são iguais, mas se relacionam, por oposição ou absorção às ou das fôrmas tradicionais: sacramentos, papado, devoção santoral ou mariana e missa, opõem-se e se complementam mais ou menos, atravessados por “estruturas feito habitus e história” (expressão de Pierre Sanchis).
Daí Catolicismos, sobretudo a depender de quais aspectos enfatizados: dogma e hierarquia ou acomodação e ortopráxis. Moral ou pastoral. Báculo áureo ou cajado pastoril. Sandálias rotas ou manto de seda. Letra morta da lei ranzinza ou espírito amoroso universal. Inocêncio III, papa das terríveis cruzadas ou Franciso de Assis, santo do cósmico amor. Inquisição e fogueiras, ou misericórdia sem limites. Santo Agostinho ou Tomás de Aquino. Tomás de Torquemada ou Giordano Bruno. São Martinho de Lima ou São Gregório Magno. Frei Bartolomeu de Las Casas (defensor dos indígenas) ou Sepúlveda (exterminador dos povos originários). Dom Aldo Paggoto ou D. Pedro Casaldáliga e Óscar Romero. Padre Paulo Ricardo ou padre Júlio Lancelotti. Eros Biondini (deputado federal) ou Irmã Dorothy. Grupos como Centro Dom Bosco, reacionário-persecutório, ou Católicas pelo Direito de Decidir, feminista-dialogal. Documentos como Pacem in Terris, Rerum Novaruma, Laudato Sì, Fratelli Tutti ou Syllabus Errorum, Quanta Cura, Divinis Redemptoris, Concílio Vaticano I ou Vaticano II. Missa tridentina ou missa Paulo VI e inculturada. Em alguns pares de oposição, podemos colocar um “e” ou “ou”. Ou seja, há tons, meios-tons e sobretons nesses binômios
Falamos, assim, Catolicismos: romano, carismático, conservador, da libertação, progressista, carismático-pentecostal, liberal, feminista, reacionário, santoral, popular, mas também, africano, do norte, do centro ou latino-americanos, amazônico, pernambucano, carioca ou mineiro, europeu, asiático, urbano, rural, midiático, ecumênico e suas clivagens e vertentes internas, desdobrando-se no tempo-espaço. O liberal alemão ou o rígido polonês, por exemplo.
Todos eles interagem (oposição e/ou complementaridade) entre si e com mudanças socioeconômicas, culturais e políticas, mídias e redes digitais, em uma tensão entre o passado acumulado-atávico, ressentido-ascético, cheio de medo-culpa e o presente aberto, plural, cheio de crises terríveis, do e sofrimento e de desejos de igualdade social, paz, alegria e misericórdia. Entretanto, há também um passado de riquezas escondidas: Patrística (“inferno está vazio”), santas heresias (Amaury de Bène, “Se Jesus morreu e saldou a dívida original, não há mais nenhuma, há liberdade”), mulheres (Hildegarda de Bingen monja, compositora, teóloga, naturalista) e cientistas (Gregor Mendel, Teilhard de Chardin).
Qvo vadis Cathólicós?
Roma, a paróquia mais longínqua e o aparelho celular do leigo se encontram em encruzilhadas: galopantes destruição do meio-ambiente (e Amazônia em particular), extermínio dos povos originários, fome, pobreza, violência, migrações forçadas, sindemias (doenças biopolíticas), fascismo comportamental reacionário, acelerada perda de fiéis, abusos sexuais, redes digitais. multiplicidade de modelos familiares-sexuais e de gênero e, ainda, mas sem intenção de completar a lista, crise neoliberal-capitalista. O barco singelo do pescador balança entre as águas dogmáticas do negacionismo e pseudociência, do clericalismo patológico e pânico moral infundado, da moral fechada-histérica e narcisista, anti-intelectual e anti-dialogal e as águas abertas da sede universal de justiça e de pão, dignidade, do amor-cósmico sem limites. Onde vai aportar, quem saberá dizer!
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